João Silva

Graduado em economia e relações internacionais pela Boston Univeristy. Mestre em relações internacionais na University of Chicago e mestre em finanças pela University of Miami.


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De quem é a culpa?

Política fiscal contribuiu para tragédia no Rio Grande do Sul

Má qualidade dos gastos públicos redirecionou recursos da prevenção de desastres naturais para o financiamento da burocracia estatal

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Foto: SBT News / Reprodução.
Foto: SBT News / Reprodução.

O Rio Grande do Sul enfrenta a pior crise de sua história. As enchentes que devastaram grande parte do estado, especialmente a Região Metropolitana de Porto Alegre, causaram um impacto ambiental e social sem precedentes. Até o momento, 166 pessoas morreram, 61 estão desaparecidas e mais de 637 mil permanecem fora de suas casas. No entanto, atribuir a culpa exclusivamente à natureza não é uma justificativa aceitável para a população gaúcha.

O estado lidera as perdas causadas por eventos climáticos no Brasil. Nas últimas três décadas, o Rio Grande do Sul acumulou prejuízos superiores a R$ 100 bilhões (sem incluir a tragédia mais recente), representando cerca de 20% das perdas em todo o país. Além disso, o município de Porto Alegre ocupa a quinta posição entre as cidades com maior risco de desastre ambiental no Brasil. Dessa forma, é inadmissível que, após enfrentar uma enchente semelhante há 83 anos, a cidade ainda não tenha construído a infraestrutura necessária para lidar com eventos semelhantes ou até mais graves.

Durante a atual crise climática, apenas duas das 23 bombas de escoamento de água de Porto Alegre estavam funcionando. Além disso, o sistema de diques e barragens da região carecia da manutenção necessária. A cota de inundação do sistema de diques da cidade é de 6 metros, acima do nível da enchente atual, de 5,30 metros. A desorganização dos agentes públicos durante a tragédia também foi inaceitável, com grande parte da assistência aos afetados sendo realizada pela própria sociedade civil.

Evidentemente, nenhum governante é culpado pelo volume de chuvas. Contudo, uma das razões pela qual um Estado é estabelecido é justamente para proteger seus cidadãos. Nesse propósito, as diferentes esferas de governo no Brasil falharam miseravelmente no Rio Grande do Sul. O “Estado hobbesiano” brasileiro, que exige tudo do cidadão, não entregou o que se esperava dele no momento mais crucial. Certamente, a crise fiscal que o Rio Grande do Sul vem enfrentando nas últimas décadas explica, em grande parte, a catástrofe que os gaúchos experimentam hoje.

Em 2022, o Rio Grande do Sul tinha a maior dívida pública em relação à receita líquida do estado (199%), superando até mesmo o Rio de Janeiro (168%) e Minas Gerais (157%), os outros dois estados em grave situação fiscal no país. Não por acaso, o Rio Grande do Sul está sob o regime de recuperação fiscal da União e possui a pior nota fiscal atribuída pelo Tesouro Nacional (D). A crise fiscal gaúcha é resultado de má gestão financeira e administrativa. Entre 1971 e 2020, o governo estadual registrou superavit financeiro em apenas sete anos. É verdade que nos últimos três anos, o governo estadual apresentou resultado orçamentário positivo. No entanto, esse resultado foi alcançado principalmente pelo aumento de impostos e transferências de recursos da União.

O elevado endividamento do Rio Grande do Sul, sem dúvida, limitará a capacidade do governo estadual de investir na reconstrução do estado. Contudo, o elevado gasto por si só não explica como a política fiscal contribuiu para a tragédia. Se o governo tivesse se endividado para financiar obras de infraestrutura destinadas à prevenção de catástrofes naturais e para melhorar a capacidade da administração pública de gerenciar crises, poder-se-ia argumentar que o endividamento valeu a pena.

No entanto, o Rio Grande do Sul não errou apenas ao gastar muito; o governo do estado também gasta mal. O déficit previdenciário ultrapassa R$ 10 bilhões por ano, com o estado possuindo mais servidores inativos (62%) do que ativos (38%). Os gastos com pessoal comprometem quase 50% da receita, e somados ao serviço da dívida, comprometem quase 78% do orçamento estadual. Dessa forma, a capacidade de investimento é extremamente limitada. Em 2023, o gasto per capita em investimento público foi de apenas R$ 460.

O Rio Grande do Sul também enfrenta uma das piores taxas de crescimento econômico do país, afetando sua capacidade de geração de receita. Entre 2002 e 2021, o estado cresceu cerca de 1,6% ao ano, superando apenas o Rio de Janeiro. Atualmente, o Paraná já contribui mais para o PIB brasileiro do que o Rio Grande do Sul. Os gaúchos também sofrem com um déficit migratório, uma realidade oposta dos seus vizinhos catarinenses e paranaenses. A cidade de Porto Alegre, em particular, registrou uma queda populacional no último censo.

A crise fiscal do Rio Grande do Sul e sua consequente estagnação econômica estão claramente atreladas à falha do Estado em prevenir e administrar a enchente histórica. Seria um grande erro atribuir o desastre apenas à natureza, pois isso implicaria aceitar tragédias futuras como algo inevitável. No entanto, a prevenção é possível. A cidade de Nova Orleans, destruída pelo furacão Katrina em 2005, foi testada novamente em 2021, quando o furacão Ida — de proporções similares ao Katrina — atingiu a região. Desta vez, a tragédia não se repetiu, graças ao investimento de aproximadamente 14,5 bilhões de dólares em barreiras, diques e “paredões marinhos” que preveniram uma nova catástrofe.

Portanto, é imprescindível que o Rio Grande do Sul reestruture seus orçamentos públicos para aumentar a capacidade de investimento e evitar que futuros eventos climáticos extremos causem tanta destruição novamente na região. O Estado não deve ser mantido para atender os privilégios da burocracia, mas sim para proteger e servir ao cidadão.

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