O desastre de governança no futebol brasileiro
A politicagem interna dos clubes de futebol fez gigantes tombarem
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O futebol é uma paixão nacional no Brasil. Para aqueles menos familiarizados com o esporte mais popular do mundo, compreender seu apelo para os aficionados pode parecer uma tarefa desafiadora. Afinal, à primeira vista, o futebol pode parecer apenas mais um esporte, ao lado de modalidades como basquete, vôlei, tênis e natação.
No entanto, o futebol transcendeu há muito tempo a condição de mera atividade esportiva. No Brasil, sua importância vai muito além do campo de jogo. O futebol é onde se constroem laços entre pais e filhos, é a válvula de escape para as agruras da rotina diária e representa a oportunidade para o brasileiro, frequentemente assolado pelo complexo de vira-lata, sentir-se o melhor do mundo em algo.
Futebol é mais do que atleta em campo
Para um jovem economista que já frequenta os arredores da Avenida Santa Catarina e da Rua Humaitá desde antes mesmo de completar um ano de vida, o futebol desperta não apenas o interesse nos vinte e dois jogadores em campo, mas também uma fascinação pelo seu potencial econômico. De fato, o futebol é muito mais do que um jogo; é um negócio de proporções expressivas.
Considerando-se que o futebol é uma fonte de entretenimento que movimenta bilhões de receitas para os clubes ao redor do mundo, não é surpreendente ser objeto de estudo e análise por parte dos economistas. Um estudo realizado pela consultoria Ernst & Young em 2018 revelou que o futebol brasileiro gerou uma movimentação financeira de R$ 52,9 bilhões e contribuiu para a criação de cerca de 156 mil empregos no país.
Esse impacto não se limita apenas ao Brasil; globalmente, o futebol exerce uma influência considerável sobre a economia. De acordo com uma pesquisa do Centro Internacional de Estudos do Esporte (CIES) também conduzida em 2018, estima-se que o futebol tenha gerado um impacto econômico de mais de US$ 200 bilhões, o equivalente a mais de R$ 1 trilhão, destacando sua relevância em escala mundial.
Crises financeiras
Embora o futebol possua um potencial econômico incrível, o Brasil enfrenta uma situação paradoxal nos últimos anos. Enquanto as receitas dos grandes clubes brasileiros crescem, as crises financeiras que os envolvem tornam-se cada vez mais frequentes. O que explica esse fenômeno? Economistas têm uma explicação para isso: os incentivos dos dirigentes não estão alinhados com os interesses de longo prazo dos clubes. De certa forma, a gestão dos clubes de futebol assemelha-se à política do país. Presidentes, governadores e prefeitos visam à reeleição e ao usufruto dos benefícios de seus cargos. Portanto, adotam frequentemente medidas populistas que proporcionam bem-estar imediato à população, prejudicando as finanças públicas futuras.
O problema é que, no futuro, a fatura recai sobre a próxima administração, geralmente os opositores. O mesmo padrão se repete nos clubes de futebol, onde os dirigentes buscam vencer os campeonatos no presente, mesmo que contratações onerosas e salários astronômicos comprometam a saúde financeira da agremiação no futuro.
Alguns poderiam levantar a questão: se existem órgãos de controle para fiscalizar as ações dos governantes, por que não há o mesmo sistema nos clubes? Na verdade, esses órgãos existem nos clubes brasileiros, como os conselhos deliberativos, que se assemelham a um parlamento, e os conselhos fiscais, que têm uma função semelhante a um tribunal de contas. No entanto, assim como na política brasileira, os ocupantes desses cargos muitas vezes não concedem a devida importância, respeito e dedicação que suas funções merecem.
Em geral, os conselhos deliberativos parecem mais uma reunião informal de velhos senhores em busca de lazer do que um órgão decisório eficaz, enquanto os conselhos fiscais são frequentemente compostos pelos indicados dos próprios dirigentes que deveriam ser fiscalizados. Além disso, os membros dos conselhos que expressam preocupações legítimas são rotulados de críticos e “do contra”. Como resultado, dirigentes irresponsáveis muitas vezes tomam decisões sem o devido escrutínio ou responsabilização por seus atos.
Derrocada de gigantes
Essa breve análise sobre o funcionamento dos clubes de futebol no Brasil lança luz sobre a derrocada de gigantes do cenário futebolístico nacional. O Vasco da Gama, um dos clubes mais emblemáticos do país, com uma torcida que ultrapassa os 13 milhões de apaixonados, representa um exemplo notório do fracasso do modelo de governança do futebol brasileiro. Entre 2008 e 2020, o clube sofreu quatro rebaixamentos para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, demonstrando uma trajetória marcada por instabilidade e desafios.
Esse declínio também se reflete em seu balanço patrimonial, onde a dívida do Vasco da Gama cresceu quase cinco vezes, saltando de R$ 169 milhões para R$ 832 milhões no período de 2005 a 2020. Diante da insolvência do clube, a única solução viável foi a venda do futebol para um fundo americano, o 777 Partners.
No entanto, a saga política no Vasco da Gama não se encerrou com essa transação. Com a transformação do clube em uma empresa, o foco passou a ser a geração de resultados financeiros, relegando o desempenho esportivo em campo a um segundo plano. Atualmente, o presidente em exercício do Vasco, o ex-jogador Pedrinho, emerge como uma voz de oposição à Vasco SAF, buscando responsabilizar a empresa por seu modelo de gestão e muitos torcedores e conselheiros clamam pela quebra de contrato com a 777 Partners.
Recuperação judicial
Em Santa Catarina, os clubes mais tradicionais do estado enfrentam desafios semelhantes. Avaí e Joinville já tiveram suas recuperações judiciais aprovadas, enquanto o Figueirense aguarda a aprovação da sua. O caso do Figueirense é particularmente representativo. Até 2009, o clube era considerado um exemplo de gestão esportiva profissional no Brasil, mas viu sua dívida disparar ao longo de uma década. Em 2009, a dívida do clube era de aproximadamente R$ 7 milhões. Recentemente, no processo de recuperação judicial, o clube apresentou uma dívida de quase R$ 200 milhões.
Essa deterioração financeira do clube resultou em um declínio que culminou no rebaixamento para a terceira divisão do Campeonato Brasileiro e em situações constrangedoras, como uma derrota por W.O. em 2019 devido ao protesto dos jogadores pelo atraso nos salários.
Outros clubes tradicionais do futebol brasileiro, como Cruzeiro e Internacional, também foram palco de graves irregularidades em suas administrações. No caso do Cruzeiro, dois conselheiros foram presos no início do ano. Já no caso do Internacional, o ex-presidente e o ex-vice-presidente de finanças do clube entre 2015 e 2016 foram condenados por organização criminosa, estelionato e lavagem de dinheiro, representando um dos raros casos de responsabilização de dirigentes no país.
Vaidade nos clubes de futebol
Nelson Rodrigues, renomado cronista do futebol brasileiro, afirmava com propriedade que “o que sustenta, nutre e dinamiza o futebol é a vaidade.” Embora a vaidade seja considerada um pecado, em muitas ocasiões pode ser um impulso para auxiliar os clubes de futebol. O Palmeiras, nesse contexto, oferece um exemplo notável. Em 2013, diante de sérios problemas financeiros e na segunda divisão do Campeonato Brasileiro, o empresário Paulo Nobre assumiu a presidência do clube, conduzindo-o de volta à elite do futebol nacional e reestruturando suas finanças, inclusive arriscando seu próprio patrimônio.
Posteriormente, Leila Pereira passou a patrocinar e, mais tarde, assumiu a presidência do Palmeiras, conduzindo o clube ao seu período mais vitorioso, sem comprometer sua estabilidade financeira. No entanto, nenhum clube deve depender exclusivamente da benevolência ou vaidade de seus torcedores mais afortunados para manter-se vitorioso e financeiramente saudável. Afinal, a passagem dessas pessoas é transitória e novas gestões profligadas podem colocar tudo a perder em pouco tempo.
Modelos de gestão
Os clubes brasileiros estão diante da urgente necessidade de aprimorar seus modelos de gestão. Não é admissível que o futebol seja apenas um campo de manobras políticas internas e promoção pessoal. Com uma indústria bilionária em jogo, a saúde financeira dos clubes é um fator crucial para sua sustentabilidade e competitividade. À medida que o tempo passa, é inevitável que os resultados esportivos também reflitam essa estabilidade financeira. É essencial que os clubes brasileiros reavaliem profundamente seus modelos de governança.
Embora as SAFs possam oferecer uma perspectiva promissora do ponto de vista econômico, alinhando os incentivos dos acionistas aos objetivos de longo prazo dos clubes, há o risco de que os objetivos esportivos sejam negligenciados em favor dos interesses financeiros. Portanto, é crucial buscar um equilíbrio entre essas duas dimensões, garantindo que o sucesso econômico não seja alcançado à custa do desempenho esportivo, mas sim como um meio de fortalecê-lo.
As associações esportivas brasileiras têm a oportunidade de liderar o cenário esportivo brasileiro, se melhorarem significativamente a sua governança interna. Os conselhos deliberativos devem desempenhar um papel crucial como órgãos de escrutínio, garantindo a transparência e a prestação de contas. Além disso, é essencial que as contas dos clubes sejam regularmente auditadas por profissionais externos e independentes.
As agremiações esportivas devem investir na manutenção de uma equipe de funcionários e administradores qualificados, capazes de transcender as mudanças de liderança e de priorizar os interesses de longo prazo dos clubes. Desta forma, tanto as SAFs quanto as associações esportivas bem geridas têm o potencial de impulsionar o futebol brasileiro e colocá-lo novamente em competição com as principais ligas europeias. É imperativo que o futebol brasileiro adote um novo modelo de governança para garantir seu desenvolvimento e sucesso contínuos.
As opiniões do colunista não refletem, necessariamente, a opinião do Portal SCC10
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