João Silva

Graduado em economia e relações internacionais pela Boston Univeristy. Mestre em relações internacionais na University of Chicago e mestre em finanças pela University of Miami.


Colunistas Compartilhar
SURPREENDENTE

Minha experiência no apagão em Portugal

Apagão na Península Ibérica expõe a rápida velocidade com que podemos alcançar o colapso social

• Atualizado

Por

Minha experiência no apagão em Portugal | Foto: Internet/Reprodução
Minha experiência no apagão em Portugal | Foto: Internet/Reprodução

Assim que cheguei ao Aeroporto de Lisboa para retornar ao Brasil, fui surpreendido por uma cena inusitada: as luzes do aeroporto se apagaram de repente. A princípio, imaginei tratar-se de uma simples falha no sistema elétrico local. No entanto, enquanto ainda havia conexão com a internet, descobri que o problema era muito mais grave: um apagão de grandes proporções atingia não somente Portugal, mas também a Espanha e partes da França.

A partir desse momento, a situação só piorou. Ficou evidente a completa ausência de um plano de contingência, tanto por parte das autoridades públicas quanto das empresas privadas. No próprio Aeroporto de Lisboa, o despreparo era gritante. Para um hub internacional de transporte, seria razoável esperar que houvesse geradores capazes de sustentar, ao menos, os serviços essenciais por algumas horas ou dias. O que se viu, no entanto, foi o colapso total: sistemas de segurança, controle de fronteiras e manuseio de bagagens deixaram de funcionar.

Como se não bastasse, os passageiros foram instruídos a abandonar o aeroporto — uma ordem surpreendente e mal executada. Logo em seguida, proibiram a entrada de ônibus, táxis e veículos por aplicativo nas dependências do terminal. Resultado: milhares de pessoas, com malas e crianças no colo, tentavam encontrar transporte nas ruas, no escuro, sem qualquer apoio ou orientação.

A disfuncionalidade generalizada também se evidenciou na atuação do setor privado. Grandes redes de hotéis, sem qualquer suporte de geradores, simplesmente abandonaram turistas nas ruas. Restaurantes e supermercados fecharam as portas sem previsão de reabertura. Passageiros ficaram presos em trens e metrôs paralisados, sem qualquer assistência. Até mesmo o sistema de telecomunicações entrou em colapso — em poucas horas, somente quem tinha acesso ao rádio conseguia alguma informação. Apesar de parecer inusitado, o cenário apresentado era semelhante ao de uma zona de guerra, instaurada abruptamente.

Em primeiro lugar, é preciso compreender a tensão inevitável entre eficiência e segurança. Sistemas centralizados e a importação de energia de regiões com menor custo oferecem ganhos operacionais significativos. No entanto, essa mesma centralização torna toda a estrutura extremamente vulnerável: basta uma falha para o colapso ser generalizado. Esse episódio escancara a urgência de se estabelecer sistemas de backup e de repensar o grau de dependência da eletricidade em atividades básicas. Um exemplo disso foi o fechamento de restaurantes, muitos dos quais utilizam fogões acionados por faíscas elétricas — sem energia, ficaram completamente inoperantes. No Brasil, esse impacto seria menor, já que ainda é possível o acendimento manual do gás.

Outro reflexo grave foi o desligamento dos semáforos, que mergulhou o trânsito no caos. Curiosamente, nesse aspecto, o Brasil poderia apresentar maior resiliência: acostumado a interrupções frequentes no fornecimento de energia, muitos de nossos semáforos são equipados com nobreaks ou alimentados por energia solar, permitindo seu funcionamento mesmo em situações emergenciais.

Em suma, Portugal tornou-se vítima da confiança absoluta em um sistema elétrico sofisticado, porém centralizado e desprovido de redundâncias. A falha catastrófica revelou não somente a extensão da dependência, mas a carência de mecanismos eficazes para mitigar os efeitos de uma interrupção. Uma lição amarga, mas necessária.

Outro ponto crucial diz respeito ao modelo econômico e social contemporâneo, que nos empurra para uma crescente hiperespecialização. Estamos cada vez mais treinados para desempenhar funções específicas em engrenagens muito bem delimitadas, mas, em contrapartida, perdemos a capacidade de reagir com autonomia diante de situações emergenciais. Embora seja frequentemente descrito como um sistema de competição, o capitalismo é, na realidade, um complexo sistema de cooperação social coordenado pelo sistema de preços. Como observou Milton Friedman, até mesmo aqueles que se odeiam mutuamente cooperam para a fabricação de algo tão simples quanto um lápis, resultado de uma cadeia global que envolve milhares de indivíduos interligados por um complexo sistema de preços.

É evidente que a hiperespecialização não é, por si só, um erro ou um risco a ser evitado. Voltar à autossuficiência total seria uma regressão histórica. Produzir o próprio alimento, tecer a própria roupa, construir a própria casa — tudo isso nos levaria de volta a um mundo pré-industrial, marcado por crescimento econômico nulo, miséria generalizada e ciclos frequentes de fome. A especialização é uma das chaves do progresso moderno.

O que precisamos, portanto, não é menos especialização, mas mais resiliência. Isso exige a criação de “autosseguros” e estratégias eficazes de gestão de crises para enfrentar situações extraordinárias — desde apagões como o ocorrido na Península Ibérica, até eventos climáticos extremos, como as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Ambos os casos revelaram falhas previsíveis: a ausência de sistemas de backup de energia na Europa e a falta de infraestrutura de contenção de enchentes no Brasil. Mais grave ainda foi a incapacidade tanto do setor público quanto do privado de atuar de forma coordenada e eficiente quando os mecanismos de mitigação falharam. A vulnerabilidade nesses casos não se limitava ao desastre, mas também à falta de preparo para lidar com ele.

Existe um provérbio chinês que diz: “Os sábios aprendem com os erros dos outros, os tolos com os próprios erros, e os idiotas jamais aprendem.” Diante disso, é fundamental que o Brasil tire lições dos problemas já enfrentados na Península Ibérica, para evitar que eles se repitam por aqui. Florianópolis, por exemplo, já viveu o impacto de uma vulnerabilidade estrutural, ao ficar três dias sem energia elétrica por depender de um único ponto de entrada para os cabos de transmissão. Hoje, essa fragilidade foi corrigida com a existência de três acessos. Que os erros alheios sirvam de alerta. Se a recuperação da energia levasse mais alguns dias, as consequências poderiam ser desastrosas. Prevenir ainda é o melhor caminho.

>> Para mais notícias, siga o SCC10 no InstagramThreadsTwitter e Facebook.

Quer receber notícias no seu whatsapp?

EU QUERO

Ao entrar você esta ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

Fale Conosco
Receba NOTÍCIAS
Posso Ajudar? ×

    Este site é protegido por reCAPTCHA e Google
    Política de Privacidade e Termos de Serviço se aplicam.