O perigo de resumir um relacionamento em quatro perguntas
O filme "A Lista da Minha Vida" conquistou o coração de muita gente, mas a questão que fica martelando depois dos créditos finais é outra
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O filme “A Lista da Minha Vida” conquistou o coração de muita gente, mas alugou um triplex na cabeça desta jornalista que vos fala. Há semanas no topo daquela plataforma de streaming, ele se encaixa perfeitamente naquela categoria “comfort movie”. Só que o ponto aqui não é o roteiro ou o romance que arranca suspiros. A questão que fica martelando é outra: será que dá para resumir um relacionamento em quatro perguntas?
Calma! Se você ainda não assistiu, e tá meio por fora, eu contextualizo.
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No filme, Alex Rose, em meio ao luto pela morte da mãe, recebe a missão de completar a lista de desejos que ela mesma escreveu na adolescência.
Um dos itens é “Encontrar o verdadeiro amor.” E é nesse momento que a trama virou munição para um textão.
A Alex já está em um relacionamento, mas ele anda meio mal das pernas. Ao refletir sobre isso, se lembra das quatro perguntas que a mãe sempre disse que poderiam a ajudar a identificar o amor verdadeiro:
- Você pode contar a ele/ela tudo o que está no seu coração?
- Ele/ela é gentil?
- Ele/ela te ajuda a ser uma versão melhor de si?
- Você imagina ele/ela como o pai/mãe dos seus filhos?
Parece simples, né? Mas é aí que mora o problema.
Todo mundo começou a refletir
As quatro perguntas se espalharam na internet e viraram pauta de conversas entre grupos de amigos. Mas daí vem a pergunta que provocou esse conteúdo: quantos relacionamentos não podem estar sendo colocados em prova por conta de um roteiro de ficção?
A gente já vive sob tantas regras sobre como amar, como se comunicar, demonstrar — será que mais uma fórmula de conduta é o que a gente precisa?
Conversei com algumas pessoas sobre isso.
“Se a pessoa tem que se questionar, é porque no fundo ela já sabe que o cara é um bosta”, rebateu uma delas. Direto, curto e grosso, mas é um ponto. Se você precisa parar e fazer uma lista para entender se o relacionamento vai bem, talvez a resposta já esteja aí, nas entrelinhas.
“Você imagina ele/ela como pai/mãe do seu filho?” De pronto ela respondeu: “Tem gente que não nasceu pra isso, daí não tem o que fazer. Tem gente que não tem jeito com criança… isso é coisa que não se resolve com conversa”.
Será que estamos cobrando do outro algo que nem faz sentido para ele — ou para o momento que ele está vivendo?
Uma segunda entrevistada foi na ferida: “A vida é muito mais complexa do que isso. Eu adorei o filme e achei as perguntas relevantes, mas tudo é muito fantasioso, né? Relacionamento tem tranco, tem barranco, tem dias ruins. Essas perguntas não englobam isso”, disse.
Outra amiga entrevistada trouxe um olhar diferente: “Apesar de um relacionamento ser muito mais do que isso, acho importante continuar se questionando. Muitas vezes a gente fecha os olhos para coisas que estão ali na nossa cara. Não dá pra resumir a relação a quatro perguntas, mas elas podem ser um bom termômetro”.
E quando o termômetro acusa febre, é motivo para terminar tudo? Ou só um alerta de que algo precisa ser conversado e resolvido?
Mais e mais regras
“Quando a internet transforma perguntas subjetivas em critérios definitivos para o amor verdadeiro, ela está criando regras disfuncionais”, pontua a psicóloga Amanda Patricia Pimentel de Miranda.
Este é o meu ponto! Nem todo mundo vai se encaixar em um molde tão simples. Comunicação, por exemplo, é uma habilidade que pode ser desenvolvida. Infelizmente, nem todos crescem em lares em que o diálogo é a ferramenta mais utilizada.
Além disso, alguém pode ter uma comunicação péssima, mas estar disposto a aprender, crescer, melhorar.
Segundo: a gentileza pode ser interpretada de formas diferentes. Talvez você encontre a pessoa mais gentil que já conheceu. Ela vai se oferecer para ajudar na cozinha, abrir a porta do carro e saber exatamente o que falar para te confortar, mas terá outros inúmeros defeitos difíceis de engolir.
Desejar filhos ou não é algo que pode (ou não) mudar com o tempo — e, sim, precisa ser conversado.
E talvez uma boa questão também seja: o que você está oferecendo? Você está sendo essa pessoa que exige? Está sendo gentil? Está ajudando o outro a ser melhor? Está criando espaço seguro para que ele ou ela conte o que está no coração?
Avaliar só a partir do seu ponto de vista é correr o risco de ignorar que relacionamento é uma construção.
A armadilha das quatro perguntas
A armadilha dessas quatro perguntas não está nelas em si, mas na idealização que as acompanha. É quando a gente começa a achar que um relacionamento bom é aquele que preenche todos os requisitos de uma lista fantasiosa, sem falhas, sem tropeços.
E a vida, você sabe, não é assim. Um dos entrevistados contou que já esteve em relacionamento que batia todos os pontos da lista — e foi o mais tóxico que viveu.
No fim das contas, o perigo maior é acreditar que existe uma fórmula infalível. Não existe. Existe diálogo, contexto e história de vida.
Existe você e o outro tentando, na medida do possível, encontrar um jeito de fazer dar certo — e sabendo quando não dá mais.
Se for para fazer perguntas, que elas sirvam para abrir caminhos e não fechar portas. E que sejam feitas olhando para o outro, mas também, e principalmente, para si.
Recorri a psicologia
“‘Se eu não consigo contar tudo para meu parceiro, ele não é o amor da minha vida’. Mas comunicação é uma habilidade que se aprende. Tem gente que nunca foi incentivada a se expressar emocionalmente. Isso pode ser treinado. Pode ser resolvido em terapia. E não deve ser usado como argumento definitivo para medir o valor do outro”, pontua a psicóloga Amanda Miranda.
Ou seja: a resposta negativa a uma pergunta não deveria ser, automaticamente, um ponto final.
“Não adianta cobrar de alguém algo que você também não está disposto a oferecer”, diz Amanda. “A gente parte de um lugar onde espera que o outro seja perfeito, mas muitas vezes não se dá conta que também tem limitações. Relacionamento saudável exige esse olhar para dentro, e não apenas para o outro”, acrescenta Miranda.
A idealização do amor perfeito também entra em cena. Quando as redes sociais amplificam listas como essas, se cria parâmetros inalcançáveis, e junto com eles, a frustração.
“Se alguém diz que o relacionamento dela preenche todos os quesitos, isso distorce nossa percepção. A gente começa a achar que só aquele modelo é o certo, e se o nosso não se encaixa, está condenado”, reflete Amanda Patricia.
Marina Garcia, outra psicóloga consultada para este conteúdo, toca em um ponto parecido. “Essas perguntas são muito específicas e simplistas. Elas dizem algo, mas não tudo. O que vale mais é refletir sobre os valores que sustentam a relação. E lembrar: nem todo mundo quer ser pai ou mãe, nem todo mundo demonstra amor da mesma forma”, ressalta.
Marina também chama atenção para o fato de que às vezes a dúvida não está no outro, mas em nós.
“Você pode não conseguir contar tudo ao parceiro por suas próprias inseguranças. Aí a pergunta não revela um problema na relação, mas uma dificuldade interna. E aí? A gente vai terminar porque não sabe se abrir?”, finaliza Marina Garcia.
O que podemos tirar de lição?
A questão central aqui não é desqualificar as quatro perguntas do filme — afinal, elas podem servir como um ponto de partida para o autoconhecimento.
O problema começa quando viram lei. Quando são transformadas em receita de bolo. Quando passam a ditar regras e a validade de uma relação.
Somos seres influenciáveis, sim. A cultura digital dita comportamentos, preferências, até o jeito como amamos. Mas a promessa de perfeição pode estar nos cegando para algo ainda mais importante: o real.
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