João Silva

Graduado em economia e relações internacionais pela Boston Univeristy. Mestre em relações internacionais na University of Chicago e mestre em finanças pela University of Miami.


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SLOGANS VAZIOS

Os falsos rótulos da política

No Brasil, o dito governo “progressista” parece mais um governo reacionário

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Foto: Freepik.
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Direita e esquerda. Conservadores e liberais. Capitalistas e socialistas. Progressistas e reacionários. Esses rótulos são amplamente utilizados para categorizar grupos políticos ao redor do mundo, servindo como ferramentas úteis para análises acadêmicas. No entanto, para os eleitores, esses rótulos deveriam ser vistos com ceticismo. Afinal, eles frequentemente se transformam em slogans vazios, usados mais para conquistar votos do que para transmitir ideias. À medida que a política assume contornos de um entretenimento, semelhante a um reality show, afirmar ser de esquerda ou de direita tornou-se uma estratégia para atrair o apoio de eleitores que encaram a política como uma disputa futebolística.

Não deveríamos apoiar candidatos incondicionalmente apenas porque eles se dizem “de esquerda” ou “de direita”, assim como fazem os torcedores de futebol que apoiam incondicionalmente seus clubes. O que deveria realmente importar são as ações concretas, como ensina a Epístola de Tiago: “De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras?”

Infelizmente, os rótulos políticos dominam as eleições no Brasil, levando-nos a priorizar a estética e os discursos dos candidatos em detrimento da análise de suas propostas e de seus históricos de gestão. Um exemplo marcante dessa desconexão entre discurso e prática é o atual governo federal. Durante a campanha eleitoral, o PT e seus aliados apresentaram uma campanha publicitária cativante, com o slogan esperançoso de “União e Reconstrução”. No programa de governo, reforçaram-se compromissos com ideias do dito campo “progressista”, prometendo defender a igualdade, a democracia, a soberania, a paz e promover o desenvolvimento econômico sustentável com estabilidade. O partido também destacou sua dedicação à justiça social, à inclusão com direitos, ao trabalho, ao emprego, à renda e à segurança alimentar. Além disso, comprometeu-se a enfrentar as mudanças climáticas e promover a sustentabilidade social, ambiental e econômica. Contudo, é preciso questionar se tais promessas têm se traduzido em ações concretas ou se permanecem no campo da retórica.

Nos últimos dois anos, as políticas do governo federal têm se aproximado mais de um perfil reacionário do que de um governo supostamente progressista. Pergunto: você se sente mais à vontade para expressar sua opinião hoje do que em 2022? Antigamente, era possível criticar abertamente um presidente — até o chamar de “genocida” — sem temer sanções legais. Hoje, até uma crítica à política fiscal pode resultar em inquéritos. Na área ambiental, também vimos retrocessos significativos. Segundo o INPE, em 2024, o Brasil registrou 278,3 mil queimadas, o maior número desde 2010. Já o Imazon apontou que a degradação florestal na Amazônia atingiu o maior índice em 15 anos, equivalente à área total do estado de Alagoas. No meu último artigo, destaquei o aumento das tarifas de importação sobre veículos elétricos e placas solares — uma medida contraditória para um governo que se diz preocupado com as mudanças climáticas.

As políticas “antiprogressistas” não param por aí. O mesmo PT que votou contra o Marco do Saneamento e começou seu governo revogando pontos importantes da legislação, agora precisa ignorar os avanços dessa política. O Marco já permitiu que o saneamento básico privado atingisse 30% dos municípios brasileiros, com mais de R$ 200 bilhões comprometidos em investimentos no setor. No entanto, para o governo, parece mais importante discriminar o capital privado do que ampliar o acesso à coleta de esgoto, que ainda é inacessível para cerca de 90 milhões de brasileiros. A desatenção com a saúde pública do governo dito “pró-ciência” também reflete no acesso a vacinas. Segundo o Conselho Federal de Medicina, a vacina contra a varicela está indisponível em mais da metade (52,4%) dos 2.895 municípios pesquisados. Outras vacinas, como a da Covid-19, estão ausentes em 25,4% das cidades, enquanto imunizantes essenciais como a DTP (18%), a meningocócica C (12,9%), a tetra viral (11,6%) e a da febre-amarela (9,7%) também enfrentam escassez, expondo milhões de brasileiros a doenças preveníveis.

No campo da política fiscal, o governo “progressista” parece ter adotado de vez um chapéu reacionário, inspirado na fórmula inflacionista do imperador romano Diocleciano, que buscava cobrir o déficit público por meio da desvalorização da moeda. Com declarações como a do presidente, afirmando que “investimento social não pode ser considerado gasto” e que “vai vencer [o mercado financeiro] outra vez”, o desprezo pela ciência econômica se torna evidente. Com o déficit público atingindo 10% do PIB, o real segue em queda frente ao dólar, mesmo com intervenções do Banco Central, enquanto a inflação ameaça disparar, penalizando justamente os mais pobres — aqueles que o governo afirma proteger.

Como se isso não bastasse, o governo ainda anunciou um reajuste acumulado de 27% para o funcionalismo público até 2026, mesmo quando a média salarial dos servidores já é quase o dobro da dos trabalhadores do setor privado em funções semelhantes. Apesar do suposto aumento dos “investimentos sociais”, o número de moradores de rua no Brasil cresceu 25% apenas em 2024, um triste marco alcançado durante a gestão do autointitulado “governo dos pobres”. Assim, fica a pergunta: temos realmente um governo comprometido com os mais necessitados ou um que prioriza os interesses da burocracia estatal e do rentismo?

Voltando à Epístola de Tiago, é necessário refletir: de que adianta ter fé, se não há obras? É exatamente por isso que não devemos nos prender apenas a discursos, mas sempre avaliar as ações de nossos governantes. A política atual é amplamente conduzida pela manipulação da linguagem. O jurista e escritor espanhol Jesús Laínz, em seu livro La Lengua Retorcida, observa que “quando faltam ideias, tende-se a preencher o vazio com palavras”. Ele ainda cita o escritor inglês George Orwell, ressaltando que “a maioria das corrupções sociais começa pela corrupção da linguagem”.

O termo progressismo é um claro exemplo da corrupção da linguagem para atingir ganhos políticos. Afinal, quando lemos a palavra “progressismo”, geralmente pensamos em algo positivo — vem à mente imagens de desenvolvimento, prosperidade e coesão social. No entanto, a origem do movimento “progressista” está associada a grupos políticos que não tinham como prioridade a inclusão social. Em seu livro Illiberal Reformers: Race, Eugenics & American Economics in the Progressive Era (Reformadores Iliberais: Raça, Eugenia e a Economia Americana na Era Progressista), o economista Thomas C. Leonard, professor da Universidade de Princeton, revela que o crescimento do movimento progressista nos Estados Unidos, entre o final do século XIX e o início do século XX, esteve vinculado as políticas de bem-estar social, como o salário mínimo, a limitação de horas de trabalho e a regulação antitruste. Embora essas políticas aparentassem beneficiar a população, muitas tinham como objetivo restringir o acesso ao trabalho e aos direitos políticos de grupos considerados “indesejados”, especialmente afro-americanos, imigrantes, mulheres e pessoas com deficiência. Além disso, muitos políticos e burocratas progressistas eram abertamente eugenistas, defendendo inclusive o darwinismo social. Um exemplo disso é a Lei de Expatriação de 1907, que determinava que mulheres americanas casadas com estrangeiros perdiam automaticamente sua cidadania, evidenciando como essas políticas refletiam a exclusão e a discriminação institucionalizadas.

No caso brasileiro, a brilhante jornalista Paula Schmitt, em seu livro Consenso Inc., expõe como a manipulação da linguagem e da informação é usada para promover os interesses de grupos econômicos e sociais que capturam o Estado para benefício próprio. Em um artigo em que explica por que votou em Bolsonaro, Schmitt apresenta uma justificativa que pode surpreender muitos: “porque eu sou de esquerda”. Ela argumenta que questões que sempre foram importantes para ela, como distribuição de renda, reforma agrária, saneamento básico, redução do poder e lucro dos bancos, legalização da canábis medicinal, e o combate à corrupção sistemática, tiveram avanços durante o governo Bolsonaro — um governo que, supostamente, deveria ser “de direita”. Essa reflexão de Schmitt ilustra como a honestidade intelectual é crucial para podermos transcender debates estéticos e focar nos temas realmente relevantes para a sociedade.

A construção de um país desenvolvido não será alcançada pela luta em torno de rótulos. Votar em políticos que compartilham nossa visão de mundo é importante, mas isso, por si só, não basta. É fundamental que esses líderes sejam competentes e atuem concretamente para promover o desenvolvimento do país e a liberdade e prosperidade da população.

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