Do Marquês aos Magistrados: ecos do Pombalismo no Brasil atual
A centralização de poder, antes coroada, agora togada, mantém semelhanças profundas com a política do Marquês de Pombal
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Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi uma das figuras mais importantes da história do mundo lusitano. Entretanto, os resultados de sua trajetória não são apreciados de maneira uniforme. Para seus admiradores, Pombal é o líder político que reconstruiu Lisboa após o devastador terremoto de 1755, incentivou a modernização do Estado, da economia e da educação, além de propiciar a abertura intelectual de Portugal às ideias iluministas que despontavam em toda a Europa no século XVIII.
Embora seja exaltado por muitos como o grande reformador de Portugal, o Marquês de Pombal não poupou esforços para concentrar poder, silenciar opositores, intervir nas relações econômicas e na fé católica, instrumentalizar o Judiciário e promover uma promíscua relação entre as elites políticas e econômicas e o Estado. Foi, talvez, a figura que mais fielmente encarnou o chamado “despotismo esclarecido”, regime que proclamava a razão e a ciência como ideais, ao mesmo tempo em que reforçava o controle estatal sobre a sociedade.
No Brasil de hoje, é possível identificar práticas que ecoam aquelas adotadas pelo Marquês de Pombal no século XVIII — um fenômeno que chamo de “neopombalismo”. Nesse pombalismo à brasileira do século XXI, observa-se o fortalecimento da autoridade estatal por meio de um conluio entre lideranças políticas à esquerda do centro e lideranças do Poder Judiciário. Tal aliança tem, na prática, usurpado prerrogativas do Executivo e do Legislativo para impor uma agenda supostamente “progressista”. Esses agentes, em nome do progresso da sociedade, mobilizam o aparato repressivo do Estado para silenciar discursos e ações que contrariem essas ideias ditas progressistas.
Tanto o pombalismo quanto o neopombalismo ascendem em ambientes de deterioração econômica, instabilidade institucional e crise ética. Na época de Pombal, Portugal experimentava a diminuição de sua influência política e econômica em face do crescimento de novas potências, como o Reino Unido; além disso, o colapso moral exacerbado pela Inquisição e a fragilidade da autoridade estatal contribuíam para essa situação. Hoje, o Brasil ainda tenta romper um ciclo de quatro décadas de baixo crescimento econômico. Outros desafios incluem a descrença da população nas instituições comprometidas pela corrupção endêmica e uma crise ética, na qual a perda da espiritualidade e a degradação cultural enfraquecem os fundamentos essenciais para o fortalecimento da sociedade civil.
Outra semelhança entre os dois movimentos reside na maneira como seus dirigentes firmaram sua autoridade por meio de eventos inesperados e alegados ataques ao sistema vigente. No que diz respeito ao Marquês de Pombal, sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro ocorreu após o Terremoto de Lisboa. No entanto, após o suposto “Atentado dos Távoras”, em que Pombal atribuiu à família Távora, com o respaldo dos Jesuítas, o atentado contra o monarca D. José I, Pombal obteve um controle quase total sobre o Estado português. No Brasil, a pandemia de Covid-19, aliada aos eventos de 8 de janeiro, atuaram como catalisadores para reforçar a hegemonia do Poder Judiciário sobre o sistema tripartite de poderes. Além disso, esses eventos foram usados para neutralizar a oposição, especialmente a figura do ex-presidente Jair Bolsonaro.
As diferenças entre esses dois movimentos residem nas circunstâncias políticas e nos métodos de controle social de suas respectivas épocas. O pombalismo se firmou em uma monarquia absolutista. Já o neopombalismo floresce em um sistema representativo de jure com graves falhas estruturais.
Os mecanismos de controle social dos dois movimentos também são adaptados aos seus contextos históricos. No pombalismo predominava a censura à imprensa, a violação de correspondências e métodos brutais de repressão aos opositores. Já no neopombalismo, os métodos de controle são menos violentos. Contudo, em um mundo digitalizado, as ferramentas de controle são ainda mais eficazes. O ativismo judicial pode controlar as redes sociais, aplicar bloqueios bancários instantemente e manipular sistematicamente a informação para atender aos interesses dos detentores do poder. O resultado dessas medidas é o mesmo nos dois casos: o medo é disseminado pela sociedade, gerando um ambiente de autocensura que inibe qualquer reação concreta aos abusos de autoridade.
Sob a ótica do filósofo e cientista político germano-americano, Eric Voegelin, fica mais fácil compreender as origens e as consequências negativas desse tipo de movimento. Voegelin avalia que a ordem política é reflexo do estado espiritual da sociedade. Com a erosão das fundações espirituais da sociedade, cria-se oportunidade para o surgimento de movimentos político-ideológicos que prometem instaurar o paraíso na Terra. O pombalismo, influenciado pelo iluminismo francês, os princípios de decisão seriam a ciência e a racionalidade. Ademais, buscava-se tornar o Estado o agente do desenvolvimento econômico e social. No neopombalismo, o objetivo é estabelecer uma sociedade caracterizada pela diversidade, equidade e inclusão, visando a promoção da justiça social.
Em ambas as situações, suas lideranças se apresentam como protetores da autêntica sabedoria e os únicos aptos a conduzir a nação. O atual presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro afirmou, em uma ocasião, que os Tribunais Constitucionais exercem uma função “iluminista”, especialmente no que diz respeito às questões progressistas. Entretanto, essa soberba intelectual resulta em uma postura autoritária, visto que suas perspectivas de mundo se impõem aos direitos naturais da população e à vontade da maioria.
Voegelin, no entanto, entende que esses regimes falham ao centralizar o poder e reprimir a diversidade de ideias. O autoritarismo idealista, acaba tornando as sociedades mais alienadas e as instituições políticas e sociais se tornam mais fragilizadas. Ainda mais preocupante, tais movimentos não abordam a essência da questão: a degeneração espiritual que os gerou. Como resultado, os “reis da razão” e os “redentores da pátria” acabam criando novas crises e mais caos social.
Em Portugal, o pombalismo teve efeitos destrutivos. O historiador econômico Nuno Palma é taxativo em sua obra As Causas do Atraso Português ao afirmar que Portugal ainda arca com as consequências das políticas pombalinas. Pombal, segundo ele, arruinou o sistema educacional que era amplamente administrado pelos Jesuítas, levando Portugal a se tornar o país europeu com a maior taxa de analfabetismo do continente até o século XIX.
Além disso, Pombal não conseguiu lidar com os problemas econômicos do Império luso. O excesso de ouro vindo do Brasil tornou-se uma maldição dourada. Dessa forma, assim como a maldição associada ao petróleo que inúmeros países enfrentam atualmente, as receitas advindas da exploração mineral resultam em uma valorização da moeda e em um aumento, prejudicando a competitividade do setor industrial e tornando as importações mais baratas.
Além da desindustrialização, a produção excessiva de minerais compromete o equilíbrio de pesos e contrapesos que a sociedade exerce sobre o Estado. Os líderes políticos conseguem financiar uma considerável porção do orçamento público sem impor uma tributação significativa sobre outras atividades econômicas. Nesse contexto, Pombal intensificou o processo de enfraquecimento das instituições políticas e dos mecanismos de supervisão da autoridade régia.
O pombalismo impediu o progresso de Portugal, convertendo uma das nações mais prósperas e influentes do mundo no país menos desenvolvido da Europa Ocidental. O destino de Portugal deve servir de lição aos brasileiros. Se reproduzirmos a política pombalina com um figurino do século XXI, o resultado não será diferente.
Em vez de replicar os erros de Pombal, devemos nos inspirar nos acertos das nações que prosperaram. Reino Unido e Estados Unidos emergiram sob um iluminismo fundamentado na liberdade econômica, no respeito aos direitos individuais e na restrição da autoridade do Estado. Se almejarmos edificar uma sociedade desprovida desses princípios, o desfecho será idêntico ao de todas as revoluções: experimentos políticos que semeiam opressão e subdesenvolvimento.
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