Melissa Amaral

Doutora e Mestre pelo PPGEGC/UFSC. Pós-doutoranda. Pesquisadora no grupo de pesquisa CoMovI em Sustentabilidade Organizacional, ESG, Empreendedorismo e Empoderamento da Mulher.


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IGUALDADE

Cotas Raciais: será que resolvem mesmo a desigualdade?

Cotas raciais não são privilégios. Elas são ações afirmativas, criadas para corrigir desigualdades

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Cotas Raciais: será que resolvem mesmo a desigualdade? | Foto: reprodução / Canva
Cotas Raciais: será que resolvem mesmo a desigualdade? | Foto: reprodução / Canva

Na semana passada, fomos surpreendidos por uma notícia que merece atenção e reflexão. A Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) aprovou um projeto de lei que proíbe a adoção de cotas raciais nas
universidades do estado, inclusive nas instituições privadas que recebem recursos públicos. Diante disso, senti a necessidade de usar este espaço para explicar, por que as cotas raciais ainda são necessárias no Brasil.

Antes de qualquer coisa, é importante explicar: cotas raciais não são privilégios. Elas são ações afirmativas, criadas para corrigir desigualdades que nunca foram enfrentadas de forma efetiva pelo governo brasileiro. Que deveria governar para todas as pessoas, brancas ou negras.

Vamos a um exemplo simples. Imagine duas pessoas disputando uma corrida. Uma delas larga metros à frente, com tênis adequados, alimentação garantida, tempo para treinar e apoio durante o percurso. A outra começa bem atrás, descalça, sem preparo e enfrentando diversos obstáculos pelo caminho. Tratar
essas duas pessoas de forma igual não torna a corrida justa, apenas perpetua a desigualdade.

É exatamente isso que as cotas raciais buscam corrigir. No Brasil, pessoas que se declaram pretas ou pardas representam mais de 50% da população. Em Santa Catarina, esse percentual gira em torno de 23%. Mesmo assim, quando olhamos para os espaços de poder, universidades, altos cargos nas empresas, política, Judiciário, a presença de pessoas negras é muito menor do que deveria. Como disse a deputada Paulinha: “Quantos deputados ou deputadas negras temos em SC? Nenhum.”

Olhe ao seu redor. Quantos líderes e gestores negros tem na sua empresa? Quantos médicos, juízes, CEOs negros você conhece?

Isso não acontece por falta de capacidade, mas por falta de oportunidades. Os dados do IBGE ajudam a entender essa realidade. Apenas cerca de 12% da população preta e 13% da parda têm ensino superior, enquanto entre pessoas brancas esse número ultrapassa 30%. Na renda, a desigualdade também é evidente: pessoas pretas e pardas ganham, em média, pouco mais da metade (58%) do rendimento das pessoas brancas. Entre as mulheres negras, essa diferença é ainda maior (recebem menos da metade dos homens não negros).

Essa desigualdade não surge do nada. Ela é consequência de mais de 300 anos de escravidão, seguidos por uma abolição que não veio acompanhada de políticas de inclusão, acesso à terra, educação ou trabalho digno. A escravidão terminou no papel, mas seus efeitos continuam vivos. Desigualdade não se
corrige sozinha com o passar do tempo.

É por isso que as cotas raciais existem. Elas se baseiam em um princípio antigo, formulado por Aristóteles: tratar desigualmente os desiguais para que se possa alcançar a verdadeira igualdade.

Outro argumento comum contra as cotas é o da meritocracia. Mas vale perguntar: mérito em que condições? Mérito quando algumas crianças crescem em bairros seguros e outras convivem diariamente com a violência? Quando jovens negros são abordados pela polícia apenas pela cor da pele? Quando pessoas negras são seguidas por seguranças em supermercados? Quando crianças negras sofrem racismo na escola por causa do cabelo ou do tom da pele?

Mesmo quando famílias negras conseguem melhorar sua condição econômica e colocar seus filhos em escolas particulares, o racismo continua presente: nas piadas, nos olhares, na exclusão silenciosa. Tudo isso afeta o percurso educacional, emocional e profissional dessas pessoas. As cotas não eliminam
o mérito; elas reconhecem que o mérito nunca foi disputado em condições iguais.


Os resultados mostram isso com clareza. Antes da Lei de Cotas, apenas 37% dos estudantes das universidades públicas eram negros ou pardos, mesmo sendo maioria na população. Em menos de dez anos, esse número ultrapassou 50%. E há outro dado importante: a evasão entre estudantes cotistas é baixa, menor que a de não cotistas. Ou seja, o mito de que cotistas não acompanham o curso não se sustenta. O que faltava não era capacidade, era oportunidade.


As cotas também não são uma política permanente. Elas são medidas emergenciais, pensadas para existir enquanto a desigualdade existir. O próprio movimento negro defende, junto com as cotas, a melhoria do ensino básico. Mas esperar décadas por essa melhoria sem nenhuma ação imediata significaria aceitar que várias gerações continuem excluídas.

Por fim, é preciso dizer: o Brasil é um país estruturalmente racista. Isso se reflete nas prisões, na violência, no mercado de trabalho e na baixa representatividade política. As cotas não resolvem todos esses problemas, mas amenizam os impactos desse sistema desigual e ajudam a construir um futuro mais equilibrado para todas as pessoas.


Mais pessoas negras nas universidades hoje significam mais profissionais qualificados amanhã, mais diversidade nos espaços de decisão, mais justiça social e uma sociedade que se pareça, de fato, com o seu povo.
Discutir cotas raciais não é dividir a sociedade. É encarar a realidade como ela é. Ignorar a desigualdade não a faz desaparecer. Enfrentá-la, sim.

Talvez o dia em que as cotas não forem mais necessárias seja, finalmente, o dia em que todos largarão da mesma linha, com as mesmas oportunidades. Até lá, elas continuam sendo uma ferramenta de justiça, não de privilégio.

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