João Silva

Graduado em economia e relações internacionais pela Boston Univeristy. Mestre em relações internacionais na University of Chicago e mestre em finanças pela University of Miami.


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João Victor da Silva

Real Digital: os riscos da digitalização da moeda

A tecnologia já faz parte integral de nossa vida financeira

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Imagem ilustrativa. Foto: Michael Wuensch Via Pixabay / Banco de Imagens.
Imagem ilustrativa. Foto: Michael Wuensch Via Pixabay / Banco de Imagens.

Na semana passada, o Presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, participou de dois eventos – a 1a Reunião Ibero-americana de Bancos Centrais e a Reunião do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – quando defendeu a criação de moedas digitais pelos bancos centrais ao redor do mundo. De acordo com Campos Neto, tal proposta traria benefícios para a eficiência das transações econômicas, reduzindo custos, facilitando o acesso a dados e tornando a moeda mais acessível a população. 

De certa forma, a proposta do Presidente do BC parece estar alinhada com as tendências do mercado financeiro global. Afinal de contas, a tecnologia já faz parte integral de nossa vida financeira. Podemos acessar quase todos os serviços bancários de forma digital, podemos usar nossos cartões de crédito pelo celular, em poucos meses o PIX passou a se tornar um dos principais meios de pagamento do país, e novas instituições financeiras 100% digitais estão conquistando um maior market share do mercado financeiro brasileiro.  

No entanto, apesar dos potenciais benefícios que o uso de moedas digitais pode trazer para o funcionamento da economia, é importante que os inúmeros riscos – muitas vezes deixados de lado no debate público – sejam levados em conta na adoção de tais inovações. 

Em um artigo publicado no jornal britânico Financial Times, os jornalistas James Kynge e Sun Yu, descrevem uma das maiores preocupações que o avanço de uma moeda digital controlada por bancos centrais está trazendo para a população da China, país onde o Banco Central já está em estágio avançado de desenvolvimento de sua moeda digital. Segundo os autores do artigo, o grande risco da digitalização do yuan é o avanço do controle social e do estado de vigilância do regime comunista chinês sobre a população. Afinal de contas, com a moeda digital o governo passa a ter acesso a todas as transações financeiras conduzidas por seus cidadãos e empresas do país.

Além disso, o Banco Central pode passar a ser usado como uma ferramenta do Poder Judiciário Chinês e do Partido Comunista para bloquear transações e realizar o confisco automático do dinheiro dos cidadãos. Assim sendo, a digitalização das moedas nacionais pode facilitar a opressão de governos totalitários sobre a população. Nesse sentido, a digitalização do dinheiro poderia sacramentar a distopia orwelliana, na qual governos totalitários usam a tecnologia para o controle total da população.

Um segundo ponto que merece atenção trata-se das grandes diferenças que as moedas digitais emitidas por bancos centrais possuem em relação as criptomoedas como o Bitcoin. Afinal de contas, o presidente do BC apresenta o Real digital como sendo um instrumento financeiro similar as criptomoedas, porém com a vantagem de se tratar de um ativo de curso legal (legal tender) emitido pelo governo. Ou seja, assim como o Real, o Real digital deverá ser obrigatoriamente aceito em transações financeiras realizadas em território nacional. 

Contudo, as criptomoedas possuem duas desvantagens em relação as moedas digitais emitidas por bancos centrais. Em primeiro lugar, como já discutido no caso chinês, as moedas digitais emitidas por bancos centrais não garantem a privacidade das transações financeiras realizadas por indivíduos e empresas. Já as criptomoedas, como o Bitcoin, têm suas transações realizadas por um sistema blockchain: um sistema de transações descentralizados que garante a privacidade a movimentação da criptomoeda.

Em segundo lugar, as criptomoedas não estão sujeitas a políticas monetárias, pois elas possuem uma oferta limitada. Logo, podemos considerar que as criptomoedas possuem uma base monetária fixa, o que evita que a moeda perca valor de compra, visto que não há expansão monetária desenfreada como ocorre com as moedas emitidas por bancos centrais. 

Finalmente, precisamos considerar o terceiro ponto de atenção que devemos ter com as moedas digitais: os novos instrumentos de política monetária. Afinal, caso os bancos centrais eliminem o dinheiro físico e a população só possa usar moedas digitais para realizar suas transações financeiras, a política monetária pode mudar completamente. 

Atualmente, no Brasil a política monetária tem como objetivo principal o controle da inflação que é administrada através da política de juros do BC. Essencialmente, o Banco Central possui três instrumentos para alterar as taxas de juros. O primeiro instrumento – e mais usado – são as operações de mercado aberto (open market operations) na qual o BC compra e vende títulos do governo para controlar a oferta de moeda na economia. O segundo instrumento é a taxa de compulsório que o BC estabelece para os bancos, que também afeta a disponibilidade de crédito e moeda para indivíduos e empresas. O terceiro instrumento são as mudanças nas taxas de redesconto, que são as taxas de juros cobradas pelo BC para instituições financeiras que estão enfrentando problemas de liquidez, as quais também afetam a disponibilidade de crédito e moeda na economia.  

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Em última instância, os instrumentos que o BC usa para controlar a inflação garantem um elevado grau de eficiência no resultado de suas políticas. Afinal de contas, com juros mais altos, a demanda agregada da economia do país tende a cair, assim reduzindo a atividade econômica, que inevitavelmente leva a uma queda ou redução no nível de crescimento dos preços. Da mesma forma, quando uma economia está com inflação baixa e com um nível de atividade econômica abaixo da capacidade de produção da economia, o BC pode baixar as taxas de juros para estimular a economia. Entretanto, estas medidas não são 100% eficientes para o controle da atividade econômica. Afinal de contas, os instrumentos da política monetário não afetam a oferta de crédito e dinheiro de forma imediata. Além disso, quando os juros mudam toda a economia é afetada, mesmo quando apenas alguns setores estão levando a uma distorção nas taxas de inflação. 

No entanto, com a moeda digital a realidade muda, pois o Banco Central pode agir instantaneamente no controle da base monetária e no comportamento dos agentes econômicos. Os bancos centrais podem aplicar taxas de juros negativas, caso queiram que a população consuma mais, ou taxas de juros positivas caso o objetivo seja aumentar os níveis de poupança. Além disso, os bancos centrais podem ser ainda mais controladores, pois eles poderiam criar incentivos ou punições para alguns tipos de transações. Por exemplo, se o preço do trigo estiver muito alto, o BC pode aplicar uma taxa (imposto) sobre a transação para desincentivar ainda mais o consumo de trigo. Da mesma forma, se o setor de vestuário estiver em crise, o BC pode conceder um subsídio ao indivíduo que está comprando uma peça de roupa para melhorar a situação do setor. 

De certa forma, a digitalização do dinheiro garante ao Banco Central grandes poderes na condução da economia. Na história dos Bancos Centrais, sempre tentou-se criar mecanismos para evitar crises inflacionárias. O lastro da moeda em metais como ouro e prata, a criação de currency boards em alguns países, as políticas de metas de inflação, entre outros limites na criação de moeda sempre buscaram evitar que medidas imprudentes fossem aplicadas na condução da política monetária dos bancos centrais mundo afora. Países que não impuseram limites na criação de moeda, mais cedo ou mais tarde, viram suas moedas perderem valor em um curto espaço de tempo.

Enfim, a história já nos mostrou os diversos riscos que ausência de freios na condução da política monetária podem trazer aos países. Com a moeda digital a situação não será diferente. Caso não haja restrições aos seus poderes de condução da política monetária, o livre mercado pode estar sobre grande ameaça, pois o Estado terá amplos poderes para intervir nas transações econômicas do cidadão. Diante deste cenário, o mundo das histórias em quadrinhos nos trás uma grande lição. Em Homem-Aranha, Tio Bem alerta Peter Parker que “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. A mesma lição vale para o Banco Central. Caso o uso das moedas digitais seja levado adiante, é preciso criar mecanismos e regras para que a política monetária não seja um instrumento de opressão da população e do controle total da economia pelo Estado. 


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