Entre sons e sinais: conheça a história de uma catarinense CODA, “Eu descobri que existe um nome para mim que sou ouvinte e filha de pais surdos”
Há mais de 300 línguas de sinais pelo mundo, responsáveis pela comunicação de aproximadamente 400 milhões de pessoas
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CODA
Child of Deaf Adults (CODA), significa “Filhos de Pais Surdos”. São crianças ouvintes que cresceram em famílias surdas. É uma sigla global e uma identidade específica para a comunidade, que surgiu com o intuito de celebrar essa “herança” única.
Essas crianças crescem tornando-se bilíngue, já que aprendem a se comunicar de forma oral e através de sinais. Uma pesquisa do The Journal of Deaf Studies and Deaf Education da Oxford University aponta que, aproximadamente 90% das crianças nascidas de pais surdos, são ouvintes.
No Ritmo do Coração: O filme que trouxe CODA novamente às telas
O tema CODA ganhou novamente destaque em 2021, quando foi lançado nos cinemas o filme estadunidense “No Ritmo do Coração”, que retrata a realidade dos filhos de surdos.
O longa-metragem conta a história de Ruby, única pessoa da família que pode ouvir. A jovem, além de filha, se torna intérprete dos pais e do irmão mais velho. Ela está ao lado da família em todas as situações do dia a dia, desde consultas médicas até trabalho.
A produção aborda o preconceito que a família vive, a forma como são tratados e excluídos na maior parte do tempo, sem ter espaço na sociedade. Mostra o medo tanto dos pais, quanto da filha de se separarem, já que a grande paixão de Ruby é a música e para isso todos vão precisar renunciar. Uma história emocionante envolvendo a música e a superação do amor.
O longa da roteirista e diretora Sian Heder, que é uma adaptação de uma comédia dramática francesa de 2014 – “A Família Bélier”, fez tanto sucesso, que na edição do Oscar de 2022, foi vencedor em três categorias: melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor ator coadjuvante – dado a Troy Kotsur, o primeiro ator surdo a conquistar o prêmio.
Assista ao momento da premiação:
Das telas para a vida real: a história de uma CODA catarinense
Tainá Moser tem 22 anos, é natural de Itajaí, Litoral Norte de Santa Catarina, e compartilha a sua vida, experiências e realidades sendo uma CODA. Assim como a Ruby, os pais dela, Isaías e Salete, são surdos e foi nessa configuração familiar que ela cresceu e foi se entendendo como pessoa, como filha e como profissional.
Desde muito nova, ela recebeu responsabilidades de gente grande. E precisou aprender a se comunicar em ambas as línguas, português e Libras. A dinâmica foi se construindo em torno do cuidado dela e da irmã mais velha, Taís. Atividades rotineiras, como ir ao médico, funcionam de outra forma para a família delas.
Durante o ensino fundamental e médio, Tainá se viu em dois momentos bastante distintos. Em um deles, ela quis se afastar desse lugar de CODA por sofrer bullying dos colegas de sala e por não entender o porquê faziam isso. Porém, ela saiu desse espaço nocivo para um em que o que ela fazia e o que ela era gerava uma admiração ao redor.
Os colegas implicantes, que zombavam por ela ser “filha de mudinho”, ficaram para trás deixando espaço para amigos que queriam aprender Libras. Nesse novo ambiente, ela se viu rodeada de respeito e isso influenciou completamente as escolhas que seriam feitas dali em diante.
A partir dessa experiência do ensino médio, Tainá resolveu fazer a faculdade de Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com habilitação em Libras, “Foi um momento muito positivo da minha vida, eu estava bastante feliz”.
A escolha de ir para a faculdade também foi um dos períodos mais difíceis por ela ter que sair de Itajaí e morar longe da família. Os pais continuaram em casa e isso a preocupava bastante, porém foi nessa fase que ela se descobriu CODA.
Com o tempo, ela foi se interessando também por outra faculdade, a de Fonoaudiologia, e isso a trouxe de volta para a cidade dos pais onde ela poderia estar por perto e ainda cursar algo que gosta.
Fala aí: o projeto de Libras que chega em todos os lugares
O projeto “Fala aí” surgiu depois de algumas experiências que Tainá teve como intérprete. Nesse caminho, ela escutava com frequência pedidos de pessoas ouvintes querendo aprender Libras.
O curso surgiu, mas Tainá não estava completamente satisfeita. Ela queria que de alguma forma isso chegasse a mais pessoas, para além dos muros da escola. Foi então que ela criou uma conta, no começo de 2022, na rede social para divulgar o seu curso.
Inicialmente seria mesmo só o curso, mas foi ganhando tanta proporção que o projeto evoluiu para falar de vários assuntos do universo da Libras, “Foi um crescimento absurdo, a conta chegou a 100 mil seguidores em seis meses”.
Tainá continua com a conta em um crescimento constante, ela compartilha coisas da vida pessoal como CODA, ensina de forma descontraída e leve a Língua de Sinais, explica assuntos importantes para quem é ouvinte entender mais sobre pessoas não ouvintes, e ainda estimula o conhecimento por meio do seus cursos.
Os pais: alegrias e dificuldades de uma pessoa surda
Os pais de Tainá, Isaías e Salete, independente das circunstâncias que enfrentam até hoje no dia a dia por serem surdos, não perderam a esperança de ter uma vida melhor e nem se preocuparam com a possibilidade das filhas nascerem surdas. Pois, sendo ouvintes ou não, continuariam sendo amadas e como eles.
Com o passar dos anos, Tainá foi conquistando o seu espaço e levando suas raízes junto. Os pais da influencer ficam felizes em ver a filha interpretando e trabalhando. Principalmente para Isaías, que ajudou na educação e estimulou a filha, já que a comunicação entre os dois sempre foi mais fácil, pois seu pai sabe falar melhor.
Mas, como nem tudo são flores, as dificuldades de manter uma rotina “normal” são inúmeras, principalmente em hospitais, bancos, dentista, entre outros lugares. Para conseguirem se comunicar, às vezes, escrevem até cartas.
Hoje em dia, o casal não tem cartão de crédito. Algo comum na vida das pessoas, não têm acesso a eles, já que é quase impossível ter uma troca com as instituições, como relatou o casal e a filha. Todos os pagamentos são feitos em dinheiro ou quando Tainá empresta o próprio cartão.
Para a futura geração, Isaías e Salete desejam apenas que as pessoas busquem aprender mais sobre libras. Que canais de comunicação, áreas da saúde, instituições financeiras e educação sejam mais inclusivos, pois os surdos também ocupam grande parte da sociedade.
Língua Brasileira de Sinais
Há mais de 300 línguas de sinais pelo mundo, responsáveis pela comunicação de aproximadamente 400 milhões de pessoas. A Organização Mundial da Saúde (OMS), estima que até 2050 sejam 900 milhões de pessoas surdas.
A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida, como meio legal de comunicação, em 24 de abril de 2002 na Lei nº10.436:
“Entende-se como a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.”
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 10 milhões de pessoas são surdas, entre elas 2,7 milhões não ouvem nada. Cerca de 5% da população brasileira utiliza-se da língua de sinais para se comunicar.
Em Santa Catarina 6,9% da população têm algum tipo de deficiência. Cerca de meio milhão de pessoas do total de 7,22 milhões.
Acesso, inclusão e equidade: estão próximos ou longe?
Quando o assunto é educação acessível, a comunidade surda ainda vivencia dificuldades. De acordo com um estudo realizado pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda, 7% dos surdos brasileiros têm ensino superior completo, 15% ficam até o ensino médio e 46% até o fundamental.
Em outras áreas também há dificuldades e diferenças, como foi o caso da mãe de Tainá que recebia um valor salarial menor em comparação às pessoas que trabalhavam com ela, exerciam funções semelhantes, mas não tinham deficiência.
O rendimento salarial médio de pessoas com deficiência, em Santa Catarina, é inferior ao rendimento de pessoas sem deficiência em trabalhos informais. Em trabalhos formais a disparidade é menor.
Uma das línguas mais pesquisadas
Segundo um estudo realizado pela Preply, uma plataforma de idiomas, durante os 9 primeiros meses de 2022 foram feitas mais de 11 milhões de pesquisas no Google sobre cursos de idiomas.
Com esses dados, o estudo montou um ranking que aponta a Libras em uma das primeiras posições de buscas. A língua inglesa ficou em primeiro lugar, com 1,2 milhões de pesquisas.
No entanto, Libras surpreendeu os pesquisadores por estar logo em segundo lugar, com mais de 90 mil buscas no Brasil. Ela teve, por exemplo, 110% a mais de buscas quando comparada com a língua espanhola que ficou em terceiro lugar.
3 curiosidades que você vai gostar de conhecer
- Biscoito com alfabeto da Língua Brasileira de Sinais
Em agosto de 2022, a famosa marca de biscoito Passatempo da Nestlé, lançou uma edição especial do doce, criando uma ilustração do alfabeto em Libras.
Segundo a empresa, a ideia foi inspirada em colaboradores com deficiência auditiva e nas mais de 10 milhões de pessoas surdas no Brasil.
“Estampar Libras em nossos biscoitos é uma oportunidade de dar visibilidade ao idioma, que é a 2ª língua oficial do Brasil, e reforçar valores primordiais como a inclusão e a empatia com o próximo. Também é uma homenagem aos nossos colaboradores e colaboradoras que utilizam essa linguagem no dia a dia”, explica Leandro Cervi, Diretor de Biscoitos na Nestlé, em uma publicação oficial sobre o lançamento.
Por ser uma edição especial e limitada, o biscoito foi comercializado para todo o Brasil em um período curto.
- Primeira companhia aérea do Brasil a atender clientes surdos com Central Online de Intérpretes de Libras
Em dezembro de 2022, a LATAM se tornou a primeira companhia aérea do Brasil a atender clientes em Libras, por meio da Central de Intérpretes de Libras do ICOM, uma empresa referência no setor de acessibilidade digital para surdos.
A ação foi lançada oficialmente no Dia Internacional da Pessoa com Deficiência – 03 de dezembro.
Como funciona o atendimento?
De acordo com a companhia, nos aeroportos ou nos canais online da LATAM, o cliente surdo tem acesso a um atendimento automático e interativo em Libras dentro do ambiente digital do ICOM e pode esclarecer de forma simples e rápida suas dúvidas mais frequentes sobre check-in, bagagem e documentos para viagem.
Se houver alguma questão específica, o usuário tem a opção de se conectar por meio de uma videochamada com um intérprete de Libras, que fará contato com o atendente da LATAM para a tradução simultânea, online e humanizada. Também explicam que, esse processo de atendimento de surdos não desativa o uso do TDD (sigla em inglês para Aparelho Telefônico para Surdos), que também é realizado com intermédio de um intérprete.
- Barbie com aparelhos auditivos
A primeira Barbie surda foi lançada em 2022 pela Mattel, que segundo a empresa, a ação celebra a diversidade com bonecos da moda que incentivam a narrativa do mundo real e sonhos em aberto.
Para tornar o momento mais especial, a atriz britânica Rose Ayling-Ellis, que é surda desde o nascimento, se uniu à Barbie para o lançamento.
Como aprender libras gratuitamente?
- Wikilibras: É uma plataforma desenvolvida pelo Governo Federal em conjunto com a Universidade Federal da Paraíba e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa. Ela é colaborativa e promove a construção de novos sinais e melhorias das traduções. A plataforma soma mais de 17 mil sinais na Língua Brasileira de Sinais e uma média de três milhões de traduções por mês.
- Hand Talk: É um aplicativo gratuito que ensina Libras há mais de 10 anos. O App já foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas pelos feitos. Ele tem tradutores virtuais, conhecidos como Hugo e Maya, que fazem a tradução de texto e áudio da língua portuguesa para a Libras, e do inglês para a Língua de Sinais Americana (ASL).
- Curso da USP: A Universidade de São Paulo (USP) disponibiliza de forma gratuita e totalmente online um curso de Libras com videoaulas e estudo prático e teórico. O curso foi desenvolvido pelo Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Não é obrigatório fazer cadastro para ter acesso às aulas.
- Curso da EVG: A Escola Virtual do Governo (EVG) oferece um curso gratuito e online com carga horária de 60 horas para aprender Libras. O curso é uma introdução à Língua de Sinais e ainda oferece certificado.
- Librazil: É um aplicativo gratuito que foi desenvolvido pensando em ajudar no entendimento da Língua de Sinais. O conteúdo é mais lúdico e com linguagem simples para promover o conhecimento por meio de exercícios, jogos e animações.
- Universidade das Libras: É uma plataforma voltada para ensino e aprendizagem da Língua de Sinais. É possível conhecer os sinais mais utilizados de forma gratuita e online.
Edição: Ana Paula Bittencourt | Arte: Izabela Piazza | Texto: Izabela Piazza e Beatriz Agnes
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