Segundo estudo, 1 em cada 4 brasileiros faz uso excessivo de videogame
Especialistas recomendam que pais e professores controlem o tempo deles em frente às telas
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Um em cada quatro adolescentes brasileiros faz uso excessivo de jogos de videogame, segundo pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP). Conforme a amostragem, mais de 85% deles jogam videogame e 28% desse público atingiram os critérios do Transtorno de Jogo pela Internet (TJI), recentemente classificado como doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Esse problema entre jovens brasileiros é maior do que em todos os países que já têm pesquisas, onde a média oscila de 1,3% a 19,9%, e precisa ser analisado sob a perspectiva de epidemia, segundo o estudo. Especialistas recomendam que pais e professores controlem o tempo deles em frente às telas.
O uso excessivo de jogos online leva ao desestímulo de atividades escolares e sociais, e causa sintomas de abstinência quando retirados, segundo o estudo. Também faz com que o adolescente se isole e tenha comportamento agressivo. O Brasil tem 24,3 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos que usam a web, segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Conforme a psicóloga Luiza Chagas Brandão, doutora em Psicologia Clínica pelo IP e autora do estudo, o transtorno está descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, material indicado para profissionais da área de saúde mental utilizado em todo o mundo.
O manual lista as categorias de transtornos mentais e os seus critérios de diagnóstico, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria. Entre eles estão falta de controle sobre a frequência, intensidade e duração do jogo, prioridade crescente dada à atividade, fazendo que o jogo tenha precedência sobre outros interesses da vida e atividades diárias e continuação ou escalada da prática de jogar, apesar da ocorrência de consequências negativas.
“Percebi um aumento da procura por ajuda psicológica por causa de problemas envolvendo uso excessivo de videogames por essa população (crianças e adolescentes), o que me motivou a desenvolver o estudo. Quanto mais fui pesquisando, mais fiquei intrigada com o poder que esses dispositivos têm sobre o comportamento, e como a presença deles nos quartos dos adolescentes modifica profundamente a relação deles com o mundo, consigo próprios, com seus amigos e com seus familiares”, disse.
A doméstica Gilza Evangelista, de 37 anos, moradora de Sorocaba, vê com preocupação o tempo que o filho R., de 13 anos, gasta com os jogos no celular. “Ele fica nos jogos de oito a nove horas por dia, quase não sai de casa e meu receio é que comece a prejudicar o estudo. Ele vai bem na escola, que é da rede pública, por isso eu tento estabelecer limites, mas é difícil. Às vezes, ele espera que eu durma para continuar jogando à noite”.
Para realizar a pesquisa, Luiza usou dados do #Tamojunto 2.0, programa do Ministério da Saúde voltado para a prevenção ao uso de álcool e drogas por adolescentes. A pasta, por sua vez, adaptou ao contexto brasileiro um programa europeu de prevenção escolar ao uso de drogas denominado Unplugged.
O programa foi testado por meio de um ensaio controlado entre alunos do 8.º ano de 73 escolas públicas de três cidades: São Paulo, Eusébio (CE) e Fortaleza. Foram 12 aulas desenvolvidas ao longo de um semestre letivo, além de oficinas direcionadas para os pais e responsáveis.
A pesquisa de Luiza é composta de dois estudos associados ao #Tamojunto 2.0. O primeiro envolveu 3.939 estudantes e resultou no artigo ‘Saúde mental e problemas comportamentais associados ao jogo de videogame entre adolescentes brasileiros’, publicado pelo Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia, com sede nos Estados Unidos.
Já o segundo estudo contou com 3.658 alunos. Mais de 90% dos participantes tinham entre 12 e 14 anos e cerca de 50% pertenciam à classe média. Ambos os estudos são uma subamostra do programa do ministério, que teve um total de 5 371 participantes.
Os estudantes que participaram do #Tamojunto 2.0 responderam a um questionário com 60 perguntas que investigaram uso de drogas, bullying, classe socioeconômica, sintomas psiquiátricos e jogos eletrônicos. A última pergunta era uma adaptação da descrição do Transtorno de Jogo pela Internet encontrada no manual. Ela era composta de nove questões que foram a base para o primeiro estudo. Os adolescentes que respondiam “sim” a, pelo menos, cinco desses itens eram os que tinham um uso de videogame considerado problemático.
Já o segundo estudo se pautou nas perguntas: “Você já jogou para esquecer ou aliviar problemas da vida real?”. A resposta “sim” para essa questão foi usada como variável para encontrar explicações desse comportamento. “Foi encontrada uma prevalência de 85,85% de adolescentes que jogam videogames, e 28,17% preenchem critérios para uso problemático”, detalhou Luiza. Ela lembrou que, no passado, eram usados termos como vício, compulsão e excesso para descrever comportamentos de jogar videogame que levam a prejuízos em diferentes dimensões.Hoje, opta-se pela expressão “uso problemático”.
Segundo Luiza, esses dados mostram também que, apesar de o uso de videogames no Brasil ser compatível com o mundial, o uso problemático é mais alto que a média de outros países. Uma das hipóteses para isso está na dificuldade de os brasileiros se envolverem com outras atividades pela falta de acesso a serviços de lazer e esportes públicos e pelos altos índices de violência que afetam os encontros presenciais.
O filho mais velho da doméstica Gilza, hoje com 20 anos, ainda é adepto de jogos como o ‘Free Fire’. Ali, os competidores são liberados para disparar armas de fogo como se todos ao seu redor fossem possíveis alvos. Há também versões que envolvem conversas de conteúdo sexual entre os participantes.
Gilza conta que o mais velho costuma se juntar ao adolescente para jogar quando chega do trabalho. “Eu sei que são jogos que não instruem, pois são violentos, as pessoas se matam, praticam corrupção, usam drogas, mas até o mais novo argumenta que tudo o que está nos jogo imita a vida real”, disse a mãe.
A pesquisa também possibilitou entender quem está mais propenso ao uso problemático. “Entre as características do perfil de estudantes com maior probabilidade de jogar videogames de modo problemático estão: ser do sexo masculino, usuário de tabaco e álcool, praticar ou ser vítima de bullying e ter níveis clínicos de sintomas de hiperatividade, problemas de conduta e de relacionamento entre pares”, aponta a psicóloga. O relacionamento entre pares é aquele que acontece entre pessoas com características semelhantes, como a idade e habilidades.
Segundo a psicóloga, o uso problemático de videogames, além de afetar o próprio jovem, que deixa de dar atenção a outros aspectos da vida, também afeta quem está ao redor. “Como estamos falando de adolescentes que moram com suas famílias, o uso indiscriminado afeta quem convive com eles. Por exemplo, pode haver um crescimento dos conflitos para que os adolescentes desliguem o jogo, pode ocorrer um afastamento dos amigos e familiares ou aumento de comportamentos agressivos, o que piora os relacionamentos de maneira geral.”
A pré-adolescente S., de 12 anos, enfrenta o conflito de ideias dos pais, que são separados, sobre os jogos. Enquanto a mãe permite e até incentiva, pois acha que ajuda no raciocínio e no aprendizado do inglês, o pai, representante comercial, restringe o acesso e controla o tempo. “Já houve noite em que ela jogou até as 3 da madrugada e foi difícil tirá-la da cama no outro dia A gente não sabe quem são os parceiros e entendo que isso é perigoso”, disse o pai, de 40 anos, que não foi identificado para não expor a criança.
O maior rigor dele em relação ao uso do celular já causou desavenças em relação à guarda compartilhada. “Ela prefere ficar com a mãe, que facilita o uso e até comprou um iphone caro para ela”, disse. A família é de classe média e S. estuda em escola particular.
À reportagem, a mãe disse que também estabelece limites, não permitindo que a filha única do casal use o celular durante as refeições. Em fins de semana, quando não está com o pai, elas passeiam juntas. Admitiu, no entanto, que a menina é “muito tímida” e, por isso, já recebeu suporte de psicóloga.
Uso controlado
Para o psicólogo clínico Igor Lins Lemos, especialista em dependências tecnológicas da Universidade de Pernambuco (UPE), tanto o manual psiquiátrico da Associação Americana de Psiquiatria como a OMS categorizam o transtorno de jogos pela internet como transtorno psiquiátrico, mas não estabelecem parâmetros absolutos para a identificação do problema.
“Não há um limite de horas em que a gente pode pensar que não há risco, porque existem fatores etiológicos (causas de doenças) que podem ter influência. É necessário observar se a família do garoto tem disfunções a nível comportamental, problemas de relacionamento familiar, brigas, agressões, superproteção, abandono, violência doméstica. Se há alguma base genética de transtorno psiquiátrico, tudo isso deve estar em pauta antes de se pensar, por exemplo, que cada faixa etária tenha um uso delimitado. Quanto mais vulnerabilidade, menor deve ser o uso”, revela Igor Lins Lemos
Em regra, segundo ele, se recomenda que crianças de zero a dois ou três anos, não façam nenhum uso de telas ou tecnologia, pelos distúrbios que isso pode causar no desenvolvimento dela. “Quando passa dos 4 aos 6 anos, uma hora de uso supervisionado está OK. Dali aos 10 anos, mantém-se uma hora, com mais liberdade. Dos 11 aos 14 anos, duas horas para entretenimento por dia são aceitáveis. No final da adolescência, o adulto jovem pode ter até três horas de uso para os jogos. Não há um limite de horas em que a gente pode pensar que não há risco porque existem aqueles fatores etiológicos que devem ser considerados”, disse.
O Ministério da Saúde informou que desenvolve o Programa #Tamo Junto, que visa a prevenção ao uso de álcool, tabaco e outras drogas no ambiente escolar. Voltado para adolescentes na faixa etária de 11 a 14, o programa está sendo adaptado para prevenir também o uso excessivo de jogos eletrônicos. Conforme a pasta, estão sendo formados multiplicadores em todos os Estados e no Distrito Federal.
A partir da adesão dos municípios, o projeto é aplicado nas escolas. O programa conta com 12 aulas presenciais mais 4 aulas online, em um total de 20 horas/aula de abordagem sobre o uso de drogas, principalmente o álcool, além de orientações sobre uso de celular e outros meios eletrônicos. Os pais ou os responsáveis também participam de três oficinas.
É difícil perceber que o adolescente está viciado em videogame, mas os pais podem perceber sinais. “É preciso observar se ele está deixando de procurar outras atividades para ficar mais e mais no celular. Se ele fica triste, irritado ou mal emocionalmente quando você pede para ele se afastar do celular. Se começa a perder qualidade no desempenho de outras tarefas, como trabalhos de escola, ou um hobby que ele tinha”, diz a psicóloga Luiza Brandão, pesquisadora da USP. “O que precisamos ficar atentos é para esse balanço jogo-vida, e quanto mais esse balanço estiver pendendo para o jogo, mais há motivo de ficar em alerta.”
Nesse caso, a abordagem dos pais requer cuidados, segundo ela. “De maneira geral, o que vejo no consultório é que as abordagens costumam gerar bastante reações e podem inclusive intensificar os conflitos familiares. Se o filho ou filha já está passando por um processo psicológico com suporte profissional, essa situação deve ser dividida com esse profissional para que ele faça uma abordagem individualizada. Devemos lembrar que um dos motivos que levam esses jovens para os jogos no celular, como indicou a pesquisa, é para aliviar problemas da vida real. Quanto mais a vida familiar for aversiva, há uma tendência de que esses jovens vão para o jogo”, alertou.
Luiza sugere que os pais façam combinados com os filhos sobre o uso de eletrônicos e, também, respeitem esses compromissos. “Eles podem estabelecer determinados horários para os jogos, até usando os controles parentais (gerenciamento de tempo) dos próprios videogames, que ajudam a colocar limite nas horas de uso. É importante que haja comunicação, conversa, para que os jovens entendam o que está sendo feito, embora possam não concordar, mas percebam que os pais estão tentando ajudar em algo que ele não consegue resolver sozinho, mas que não seja uma coisa só impositiva.”
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