Cantora lagunense faz financiamento coletivo para gravar primeiro trabalho musical autoral
EP ‘Idas e Vidas’ traz seis faixas inéditas e autorais sobre as andanças da artista LGBTQIAPN+
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Nascida em Santa Catarina, lagunense, 26 anos, Avini é filha de pescadores. Do “Tita” e da Rita. Cantora, compositora, comunicadora. Uma artista musical independente. Travesti, não binária, política, empoderada, ou como ela mesma diz “e mais tudo aquilo que não esperam que seja”.
Criada em uma vila fundada a partir de uma ocupação no sul do estado, hoje bairro Vila Vitória, a artista fala com orgulho sobre essa parte da vida. “Eu vim de uma ocupação. O bairro onde eu moro, os meus pais participaram dessa ocupação. Era um terreno da prefeitura que estava vazio, sem utilidade, então as pessoas ocuparam. Isso é algo que eu me orgulho muito também, de ter sido criada lá.”, relembra a cantora.
Avini cresceu dentro da igreja cristã e saiu da cidade de origem ainda nova, com 15 anos, com destino a Grande Florianópolis. Estudou Teologia, fez coral na Primeira Igreja Batista Florianópolis, na época com o maestro da Base Aérea, onde aprendeu também a tocar violão, o principal instrumento que hoje acompanha sua voz nas apresentações. Mas antes mesmo da música, o desejo de brilhar nos palcos vinha de outro talento da artista: a dança. Algo que, segundo ela, decidiu não levar adiante por conta do preconceito.
“A música sempre fez parte da minha vida. Mas antes de eu cantar, eu dançava. Por conta da homofobia, da pressão de você ser a criança ‘viada’ que você não pode ser, de demonstrar uma feminilidade que não é permitida de você mostrar, eu meio que internalizei isso. Na música eu não era um problema, muito pelo contrário porque desde cedo já cantava bem, então me desenvolvi mais nisso. Era um lugar onde eu podia brilhar sem sofrer preconceito como quando eu vivia dançando.”
Após a experiência onde cursou apenas um ano em Teologia, não obtendo a formação na área, Avini voltou à Laguna para finalizar o terceiro ano do ensino médio. Mas a vontade de conquistar algo ainda maior fez a artista retornar à Grande Florianópolis pouco tempo depois. Desta vez, com 17 anos, a fuga de Laguna para a capital foi para estudar Jornalismo e ir em busca de algo que só ela poderia encontrar: a si mesma. “‘Fuga”, por exemplo, foi o momento em que saí de Laguna para ir para a Grande Florianópolis. Foi uma tentativa de fugir de um ambiente muito tóxico, que me fez muito mal, que me ensinou a violência desde cedo.”, relembra Avini por meio da explicação de uma das suas composições musicais.
Na nova jornada, desde o início do curso até a formação na área da Comunicação Social, a artista musical passou por inúmeras andanças e processos que a levaram ao autoconhecimento. Através disso foi que venceu as barreiras que a limitavam, para se entender e reconhecer como travesti não binária. Segundo ela, foi a partir desse momento que Avini se tornou dona de si.
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O sonho no país da transfobia
Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), pelo 14° ano seguido o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis, com inciso em mortes prematuras e violentas. Em 2022, 131 pessoas trans e travestis foram mortas no país. Somadas a elas, outras 20 se suicidaram. A comunidade compõe um grupo de pessoas com vulnerabilidade alta onde a expectativa média de vida é de apenas 35 anos, ou seja, menos da metade da expectativa média de vida da população em geral.
Em contrapartida, a nação que mais mata, é também a que mais consome pornografia trans. Uma conta que não fecha há mais de uma década. Enquanto isso, a busca de pessoas transsexuais e travestis por inclusão social, políticas públicas, ampliação de direitos, reconhecimento e respeito, não descansa um minuto sequer. “A luta diária para sair da invisibilidade, ter reconhecimento e lembrar a todos de que direitos de pessoas transsexuais e travestis também são direitos humanos, é exaustiva.”, enfatiza a artista.
Ainda segundo a (Antra), em 2018, há cerca de 5 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou da transexualidade a classificação como transtorno mental. Porém, ela começou a constar como caráter de gênero na Classificação Internacional de Doenças (CID), apenas em 2022. De lá pra cá, observando estatísticas do número de assassinatos e suicídios provocados pela falsa moralidade social e falta de políticas públicas, causas que deveriam garantir os direitos básicos para travestis e transsexuais, segundo Avini, praticamente engatinharam. “Tá sempre engatinhando, né? Essa é a verdade. É meio como se fosse obra pública, tem sempre uma madeira na frente: ‘em obras’.”
Enquanto isso, o número de vítimas continua surgindo ano após ano, e o Brasil segue no topo do ranking mundial de assassinatos. Isso, inflamado pelo preconceito transfóbico estrutural. Conforme escancara o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), os números mudam, enquanto o cenário continua o mesmo.
Sonhando em ser famosa no país da transfobia e levar sua voz para ser ouvida por públicos cada vez maiores, a cantora não esconde a insatisfação, as dificuldades e as decepções no mercado de trabalho e também com relação aos contratantes de shows. “Ser artista e trabalhar com cultura, música e comunicação sendo travesti é difícil, porque as pessoas não colocam muita fé. Ao invés de olharem pra mim e dizer ‘uau que artista’, elas pensam ‘uau que travesti’. Então, ao invés de você ser vista como profissional competente e talentosa, você é vista como travesti.”, desabafa.
Mesmo reconhecendo os preconceitos, o perigo diário contra a vida de pessoas trans e também as dificuldades na carreira musical, Avini faz questão de reforçar seus privilégios na sociedade como, por exemplo, ser uma pessoa branca. ”Nós não somos iguais, nós temos diferenças. Apesar de ser uma pessoa branca, eu sou pobre, sempre fui pobre, nunca ascendi de classe. Ser artista no meio disso tudo, é complicado. E independente de ser travesti ou de representar algumas minorias, acho que é importante também fazer recorte, eu sou uma pessoa branca. Eu tenho esse privilégio. Num país racista como esse, a gente precisa fazer esse tipo de recorte, porque eu acabo tendo acessos que pessoas pretas não tem. A gente é feito de várias camadas, acho que é muito importante ter em mente essa questão de raça, gênero e classe. Elas não andam separadas.”, explica a cantora.
Idas e Vidas
Em 2020, já formada em jornalismo, a artista deu meia volta e retornou para morar em Laguna depois de perder o emprego, consequência da crise causada pelo período pandêmico da Covid-19. Desta vez, pronta para encarar a cidade onde nasceu. Hoje, depois de muito trabalho e contabilizando três shows autorais feitos no município, a voz potente que alcança das notas doces às mais ferozes da escala musical, agora se lança em voz e violão no projeto do primeiro álbum musical. O EP ‘Idas e Vidas’ traz seis faixas inéditas e autorais sobre as andanças da artista. Uma trajetória constituída por dores, mágoas, fugas, descobertas, aprendizados, e claro, o reencontro com ela mesma.
O álbum deve sair do papel por meio de uma campanha de financiamento coletivo, idealizada pela própria cantora e apoiada pela amiga e prima Liz Flausino. Nas letras tudo aquilo que faz barulho e chacoalha as estruturas sociais conservadoras e retrógradas. “Esse álbum reflete as minhas andanças como uma pessoa trans, nas questões políticas. São reflexões minhas bem políticas porque eu não consigo fechar os olhos pra isso. O meu trabalho é político, o meu corpo é político, a minha voz é política. Então não faz sentido pra mim fazer música em silêncio. A arte é esse lugar de fazer reflexões, propor coisas, de criticar.”, detalha Avini.
Agora, realizando shows em São Paulo, com a viagem paga pelo próprio cachê, a cantora divulga o projeto para o público paulista. Na bagagem, uma única vontade: o sonho de ser ouvida! “Eu quero ser famosa, não porque eu almejo a fama. Eu quero ter mais público porque eu sei que o que eu tenho pra falar é importante. As minhas reflexões são importantes. As reflexões que eu trago dentro da minha música são importantes para serem ouvidas. E demorou muito tempo pra eu me dar conta disso.”
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